Por que há questões que são melhor respondidas com novas indagações!

Mostrando postagens com marcador contos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador contos. Mostrar todas as postagens

domingo, 4 de julho de 2010

ESTRUTURA DE BASE


Aquela infiltração, que chorava pelos cantos do banheiro, foi a desculpa inicial. Na verdade o ar ali tornara-se irrespirável. Resolveu trocar tudo: piso, paredes, móveis. Fotos? Não, nada de fotos pela casa. Trocou a cozinha, trocou os banheiros, os quartos eram todos novos. Nem as portas escaparam. Tudo para fugir à lembrança que machucava fundo. Tantos meses após sua partida a dor era ainda tão presente como no dia da despedida. 

Envolveu-se com a obra, escolheu tudo de melhor que podia encontrar. Não trocou o apartamento por estar preso ao inventário, mas o que pôde fazer para descaracterizá-lo, fez. Mudou a organização e o estilo. Revestimentos modernos nas paredes, antes tão despojadas. Transformou quarto em sala, área em cozinha, sala em varanda. 

Pedreiros, poeira, barulho, algumas noites sem ter para onde voltar. Por três meses o esquecimento do que era almoço em família. Jamais os seriam novamente. 

Enfim, a obra pronta. Cansado após um dia de intensas arrumações, plantas no lugar, não muitas. Ela amava plantas pela casa. Suas favoritas já não seria mais suportável cultivar.

Olhou ao redor, tudo lindo. E o primeiro pensamento que lhe veio à mente foi o quanto ela se orgulharia de seu trabalho, de suas escolhas. E chorou!

Não há mudança estrutural que tire de nós aquela que é estrutura de base.

***************************************************************************
Adendo: Está tudo bem comigo. É apenas um conto, ok? Obrigada pela preocupação... hehehe
Beijos a todos,
Tati

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O HERÓI

          


           Ouviu o grito. Sem pensar em nada, lançou-se às águas barrentas, revoltas, violentas, assustadoras. Nem mesmo o instinto de sobrevivência fez-se ouvir. O de solidariedade falou mais alto.


            Nadou, lutou, agarrou-se em raízes expostas, alcançou aquela mulher desconhecida, apavorada. Não havia mais ninguém no local. Com muito custo conseguiu arrasta-la até a margem.

            Em época de muitas chuvas a região vinha alagando frequentemente, o que tornou difícil determinar onde terminava a rua e onde iniciava-se o canal. Assim, ela havia caído, e como não nadava muito bem foi arrastada pela força das águas  e congelada pelo medo, que tornaram-se mais fortes do que podia suportar. A única coisa que sentiu-se capaz de fazer foi gritar. A sorte estava a seu lado, por que neste momento passava por ali, retornando do trabalho, Augusto. Um homem simples, batalhador, que voltava caminhando para não se atrasar para o jantar. O trânsito estava parado, descera do ônibus antes do seu ponto habitual e seguira a pé.


            Agora, na margem do canal, arquejava ainda tenso com a situação vivenciada a poucos minutos. A mulher sentia-se imensamente grata, estava viva graças à bondade e coragem daquele homem!
            Augusto, sentindo que tudo estava bem, despediu-se da mulher e seguiu seu caminho. Precisava apressar-se para o jantar. Sua mulher era bastante nervosa e ficava muito preocupada quando ele se atrasava, principalmente em dias de chuva forte. Mais de uma hora havia sido perdida no contratempo do salvamento. Ainda assim, estava orgulhoso de seu feito. Não o fizera por recompensa, na verdade não sabia dizer por que o havia feito. Não teve tempo para pensar, quando deu por si já nadava em direção ao grito, sem saber o que encontraria.
            Subia a última ladeira, já não mais chovia, mas o vento frio nas roupas encharcadas fazia-o tremer. Encolheu-se e apertou o passo.
            A sensação de ver o portão de casa aproximando-se foi reconfortante. Imaginou roupas quentes e secas, um abraço carinhoso e sopa quente. Imaginou o olhar de admiração de sua mulher e dos filhos enquanto contava a aventura pela qual acabara de passar.
            Ultrapassou o portão, nem chegou à porta. Sua mulher, bastante aflita aguardava-o. Glorinha era mesmo nervosa, linda, mas nervosa!
“Porque se atrasou? Ela o aguardava há horas. Não podia ter ligado?” Augusto enfrentava uma nova chuva, agora de perguntas, e suas roupas ainda pingando água. Não conseguia explicar-se.
            Quando conseguiu entrar em casa, tomou um banho, aqueceu-se.       Sentia-se injustiçado. Fora um herói, apenas um herói desconhecido. E concluiu que, não há herói sem reconhecimento.
            A mulher, ainda zangada: “Como pode arriscar-se assim por uma desconhecida? Podia ter morrido, hômi. O que seria de sua família? Se esqueceu que tem filho para criar?”
            Em vão tentou retrucar, explicar-se. Lembrou-se de tantas histórias semelhantes que já assistira no noticiário. O salvador reencontrando a vítima, o abraço, a consagração. Apareciam doações, empregos, oportunidades, presentes para os filhos, convites para entrevistas em programas matinais.
            Seguindo para a cozinha, falou, decidido:
- Da próxima vez, só se for televisionado! – E foi, resignado, buscar o prato de arroz com feijão, guardado no forno do velho fogão.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Procura-se Dona de Casa, mínimo 5 anos de experiência na função.


Por muito tempo Alice sofreu – pasmem – por não ser uma boa dona de casa. Mas por que diabos precisava ser? E o que exatamente é uma boa dona de casa?
Alguém que consegue manter móveis livres de poeira, vidros que parecem espelhos, banheiros brilhando, com agradável perfume de limpeza? Toalhas brancas, macias, sem manchas? Um cronograma de atividades domésticas cumpridas à risca? Será isso? Comida fumegante no fogão e mesa posta sempre que a família chega para o jantar, diariamente...
Não, definitivamente Alice não era assim. Não dominava a arte da limpeza, atrapalhava-se entre panos, baldes e produtos. Sentia-se perdida na função. Aquela Alice considerada pró-ativa, dedicada, comprometida, eficiente no trabalho não fazia a menor idéia de como otimizar o trabalho de casa, definitivamente não se sentia mão de obra qualificada para a função.
Sim, ela estava de acordo com a missão e valores de sua casa, afinal de contas, estes vêm sendo definidos entre ela e o marido há 15 anos, desde o primeiro dia depois daquela linda festa de casamento, quando passaram a habitar o mesmo teto. Não tiveram lua de mel, não uma lua de mel clássica, com viagem, fotos e histórias para contar aos amigos, mas viviam em uma lua de mel infinita. Eram muito felizes juntos. Felizes com pizza, lasanha congelada, cachorro quente entre outros lanches e comidas rápidas. Alice não pilotava muito bem as panelas. Fazia uma coisinha ou outra, pratos simples, rápidos e práticos, mas não poderíamos classifica-la como indicada para o ofício. Adorava almoços em ótimos restaurantes, com maravilhosos buffets de saladas, por que adorava saladas, mas detestava prepará-las. Era bastante focada no crescimento de sua família, acompanhando de perto o desenvolvimento de cada membro da equipe. Apoiava o marido em sua bela carreira, e incentivava os filhos a desenvolverem suas habilidades, apontando suas melhores características e o caminho para uma melhor colocação. Poderíamos perceber nela uma eficiente gestora, sim ela era capaz de perceber possibilidades e formas de recolocação de cada um. O filho de 12 anos era alto, esguio, longilíneo, um tanto desengonçado para a dança, mas seus longos braços e sua agilidade ajudavam-no no esporte. Era ótimo no basquete e na natação. Ela o incentivava desde o início, quando ele ainda desejava apenas ser um capoeirista. - “Sim, você pode fazer capoeira, é ótimo, mas que tal se, além disso, o matricularmos na natação? A natação é um ótimo exercício, vai ajudá-lo no alongamento”. Pronto, bastaram seis meses e 3 medalhas para Gabriel perceber que tinha mais talento para a natação do que para a Capoeira, que mantém como um hobbie, dedicando-se muito mais às piscinas atualmente. Ela era certeira! Isabel, sua linda filha de 10 anos, também era um exemplo disso. Quando a menina ainda tinha 3 anos percebeu seu talento com papel e tinta. Como era delicada sua Bel! E tinha um talento inato para a escolha das tintas, manejou o pincel com destreza desde a primeira vez. Hoje já pinta pequenos quadrinhos que são cuidadosamente emoldurados e pendurados pelas paredes da bela casa. Não é uma casa grande e luxuosa, mas é acolhedora, aconchegante e bagunçada! Sim, Alice não sabe como fazer para sentir-se estimulada pelas funções domésticas. É excelente profissional, conceituada, disputada pelo mercado. Já acumulara grandes conquistas pessoais, tinha uma carreira de sucesso. Mas faltava alguma coisa. Ela não correspondia à figura feminina dos comerciais de margarina. Como sentir-se feliz e realizada com vassoura, balde, pano de chão? Tinha que fazer alguma coisa!
Como excelente headhunter que era, agendou reunião com a gerência da equipe familiar, indicando a necessidade de preenchimento da vaga, apresentou gráficos e planilhas previamente preparados para a ocasião exibindo cálculos detalhados dos riscos, custos e benefícios envolvidos no projeto. Tudo foi tão bem elaborado que obteve imediata aprovação, com cumprimentos por sua capacidade de articulação. Colocou mãos à obra no recrutamento e seleção de pessoal habilitado para a função, utilizando sua ativa rede de relacionamentos, ligou para um, dois, três contatos. Agendou entrevistas com candidatas bastante recomendadas. Foi persuasiva, intuitiva, desafiadora, uma boa negociadora. Utilizando testes de conhecimentos e simulações práticas, escolheu a pessoa mais habilitada para aquela vaga. Definidos direitos e deveres, começo agendado para a próxima segunda-feira.
Tomou um banho demorado sem preocupar-se com o fato do blindex não brilhar como um espelho, vestiu-se, maquiou-se e saiu para o trabalho.
Podia dedicar-se às funções que exercia com maestria, afinal, a partir de segunda poderia contar com a inestimável ajuda de uma secretária do lar.