Ouviu o grito. Sem pensar em nada, lançou-se às águas barrentas, revoltas, violentas, assustadoras. Nem mesmo o instinto de sobrevivência fez-se ouvir. O de solidariedade falou mais alto.
Nadou, lutou, agarrou-se em raízes expostas, alcançou aquela mulher desconhecida, apavorada. Não havia mais ninguém no local. Com muito custo conseguiu arrasta-la até a margem.
Em época de muitas chuvas a região vinha alagando frequentemente, o que tornou difícil determinar onde terminava a rua e onde iniciava-se o canal. Assim, ela havia caído, e como não nadava muito bem foi arrastada pela força das águas e congelada pelo medo, que tornaram-se mais fortes do que podia suportar. A única coisa que sentiu-se capaz de fazer foi gritar. A sorte estava a seu lado, por que neste momento passava por ali, retornando do trabalho, Augusto. Um homem simples, batalhador, que voltava caminhando para não se atrasar para o jantar. O trânsito estava parado, descera do ônibus antes do seu ponto habitual e seguira a pé.
Agora, na margem do canal, arquejava ainda tenso com a situação vivenciada a poucos minutos. A mulher sentia-se imensamente grata, estava viva graças à bondade e coragem daquele homem!
Augusto, sentindo que tudo estava bem, despediu-se da mulher e seguiu seu caminho. Precisava apressar-se para o jantar. Sua mulher era bastante nervosa e ficava muito preocupada quando ele se atrasava, principalmente em dias de chuva forte. Mais de uma hora havia sido perdida no contratempo do salvamento. Ainda assim, estava orgulhoso de seu feito. Não o fizera por recompensa, na verdade não sabia dizer por que o havia feito. Não teve tempo para pensar, quando deu por si já nadava em direção ao grito, sem saber o que encontraria.
Subia a última ladeira, já não mais chovia, mas o vento frio nas roupas encharcadas fazia-o tremer. Encolheu-se e apertou o passo.
A sensação de ver o portão de casa aproximando-se foi reconfortante. Imaginou roupas quentes e secas, um abraço carinhoso e sopa quente. Imaginou o olhar de admiração de sua mulher e dos filhos enquanto contava a aventura pela qual acabara de passar.
Ultrapassou o portão, nem chegou à porta. Sua mulher, bastante aflita aguardava-o. Glorinha era mesmo nervosa, linda, mas nervosa!
“Porque se atrasou? Ela o aguardava há horas. Não podia ter ligado?” Augusto enfrentava uma nova chuva, agora de perguntas, e suas roupas ainda pingando água. Não conseguia explicar-se.
Quando conseguiu entrar em casa, tomou um banho, aqueceu-se. Sentia-se injustiçado. Fora um herói, apenas um herói desconhecido. E concluiu que, não há herói sem reconhecimento.
A mulher, ainda zangada: “Como pode arriscar-se assim por uma desconhecida? Podia ter morrido, hômi. O que seria de sua família? Se esqueceu que tem filho para criar?”
Em vão tentou retrucar, explicar-se. Lembrou-se de tantas histórias semelhantes que já assistira no noticiário. O salvador reencontrando a vítima, o abraço, a consagração. Apareciam doações, empregos, oportunidades, presentes para os filhos, convites para entrevistas em programas matinais.
Seguindo para a cozinha, falou, decidido:
- Da próxima vez, só se for televisionado! – E foi, resignado, buscar o prato de arroz com feijão, guardado no forno do velho fogão.
2 comentários:
É muito interessante o olhar de cada um: a vítima da enchente o vê como a mão de Deus; Ele se vê como o herói do dia e a esposa o vê como o pai de família negligente. Acho todos nós somos vítima, herói, negligente (displicente) e, também a mão de Deus, para isso só depende da circunstância.
Grandes heróis são quase sempre anônimos. beijão
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