Odeio homenagens póstumas, parece coisa de quem perdeu o bonde. Para mim, homenagens devem ser feitas enquanto o homenageado está vivo, presente, pode receber todo aquele afeto. Depois, para quem é a homenagem? Claro que lembrar de quem já partiu é necessário, que falar de quem já foi é uma forma de trazê-lo de volta à vida... mas homenagens são sempre mais generosas quando podem ser apreciadas pelo homenageado! É assim que eu penso e pronto!
Só que hoje vou morder a lingua. E vou dizer o motivo de minha homenagem póstuma: CULPA!!
Sim, muita culpa. Hoje, minha gatinha, minha filhotinha linda, minha japonesa, minha gorda, minha neném partiu. Ela já não era um neném há muito tempo. Estava velhinha, doentinha, magra... E também já não era minha há muito tempo. Eu dizia que era minha "filha casada", pois morava em outra casa - a da minha sogra - que a acolheu com muito carinho e por isso serei eternamente grata!

A Florzinha é uma gatinha vira-lata tricolor, por quem me apaixonei nos idos de 1995, quando a vi, junto com seu irmão amarelinho, dentro de uma gaiola de pássaros, na porta de uma pet shop. Estavam ali à espera de alguém que os adotasse. Não resisti, levei os dois para casa. Inventei uma história maluca, que minha tia-avó tinha me dado de presente e que não pude recusar (meu pai ODIAVA gatos). Os dois foram morar no meu quarto. Eram tão pequenos!! Ela era menor que ele, e queria imitá-lo em tudo, só que se atrapalhava, caía... Ela era meu alter-ego desde sempre: estabanada, de lua, mal humorada, agitada, preguiçosa, manhosa... Passava horas do dia observando-os.
Recebi um ultimato: dois não dava! Ok, vou escolher um dos dois. Fiquei com ela!! Não dava para ser diferente! Coisa mais linda, fofa, levada e muito, muito engraçada.

Vivemos grandes aventuras. Havia tanta intimidade e cumplicidade. Primeiro cio, a bichinha enlouqueceu. Miava, gritava, esfregava-se por tudo. Tentei manter as portas fechadas, ela era ainda uma criança, não podia deixá-la solta, um gato mal intencionado podia comprometer-lhe a reputação! Não deu certo, minha adolescente fugiu e voltou grávida. Assumi meus netos: 4! Ela teve uma gravidez tranquila, e me aguardou chegar do cursinho (sim, pré-vestibular na época...) para ter seus bebês: Cheguei, ela pulou no meu colo, rompeu a bolsa, molhou meu jeans. Fomos para seu ninho no meu quarto. Sentei ao lado dela e fiquei lá até o último filhote. Minha mãe levou lanche para mim, ela não queria que eu saísse de seu lado. Tive que correr para o pipi, minha mãe disse que ela ficou ansiosa, me procurando. Não saí mais! Foi mágico e intenso!
Foi ótima mãe, mas tinha clara predileção por um dos filhos. Um macho amarelo, muito sabido, que ganhou o nome de Simba da família que o acolheu.
Vivemos grandes histórias, muitas e muitas ao longo de sua vida. Quando o Vi me chamou para morar com ele avisei, sou pacote completo! Ela foi morar com a gente. Aos poucos o conquistou de tal forma que quem ficava de fora das brincadeiras era eu! Era a ele que ela cumprimentava primeiro quando chegávamos.
E onde está a culpa nisso tudo? Foi a primeira mordida de lingua! Quando estava grávida ouvi muitas vezes: "agora você precisa se desfazer da gata..." gente, sou veterinária. Sei que toxoplasmose tem muito menos a ver com o gato do que com carne mal passada. E eu nem comia carne!!! Para pegarmos toxoplasmose do gato temos que engolir fezes de gato ou carne de gato, e isto nunca fez parte do cardápio lá em casa.

Só que quando o Bê nasceu começaram as crises de asma, cada vez mais fortes. Fui pensando no assunto, me fortalecendo e num dia, numa consulta pediátrica de urgência, no meio de uma crise horrível, tomei coragem e perguntei para a médica dele: "A gata pode estar agravando o problema?" Sim, pelo de gato é muito fininho, pode e muito piorar o problema, além disso, saliva de gato é extremamente alergênica... Well, o que fazer? Minha gata já tinha mais de 10 anos, era uma senhora madura, gorda, castrada, linda, mas idosa. Como entregar minha filha assim? Chorei horrores e procurei uma casa que eu confiasse. Na da minha mãe não podia mais, pois o Bê ficava com ela durante o dia, enquanto eu trabalhava.
Minha sogra, de forma muito generosa, aceitou abrigá-la. Mora em uma casa enorme, com quintal idem, sempre tem gente em casa. Para a Flor foi melhor, eu acho. Lá em casa era uma vila, casa pequena, sem quintal, ficava presa e sozinha o dia inteiro... Mas e a saudade? E os laços criados?
No início mantive a compra da ração premium que era seu cardápio gourmet, visitava com mais frequência, ainda assim não era a mesma coisa, não tinha mais aquela coisa de carinho no colo, no sofá da sala... Aos poucos, vida corrida, comecei a vê-la apenas quando íamos à minha sogra (quase todo final de semana). Então veio nossa grande recessão e parei de comprar sua ração. Minha sogra assumiu o papel de provedora. A idade começou a pesar, ela ficou doente algumas vezes (entendam, sou veterinária, mas NUNCA fui clínica), precisava levá-la ao clínico. Como? De verdade, não tinha recursos para isso. Chorei algumas vezes a raiva da indignidade que isso representa. Queria poder oferecer-lhe coisa melhor, naquele momento não podia. Liguei para alguns amigos, consultas por telefone, o que sabemos não é o mesmo. Sei que não cuidei dela como devia, como ela merecia. Sei que também não ando cuidando de mim como devo, mas isso tudo se resolverá em breve! Minha filhotinha não estará por perto para receber o tratamento que merece.

Este domingo ela já estava muito caidinha, eu fiquei com ela, no chão, rezando para que aquilo não se prolongasse, para que ela partisse em paz. Que dor a da despedida, que dor maior despedir-se com culpa... Saí de lá e disse para o Vi: "Sabe que hoje foi a última vez que vimos a Florzinha, né?". Achei que ela não chegaria ao dia seguinte. Estava serena, mas de partida.
Hoje o Vi ligou, a Flor despediu-se. Viveu muito e bem. Recebeu amor, distribuiu amor. Foi especial, e eu queria ter feito mais por ela.
Hoje faço aquilo que acho horrível, a tal homenagem póstuma, por que preciso dizer, para mim e para quem quiser ouvir, que a Flor merecia mais. Merecia melhor. E que eu sinto saudades!!
Tati.